sexta-feira, 25 de maio de 2012

Fernando Lopes Graça - Canto de Amor e Morte


CD Duplo PS 5017

Fernando Lopes-Graça – Obras para piano
Canto de Amor e de Morte
Músicas Fúnebres
Música de piano para as crianças
Cosmorama

Piano: José Eduardo Martins

Este duplo CD de música para piano de Fernando Lopes-Graça é resultado duma intensa atividade de investigação do intérprete José Eduardo Martins, cuja dedicação e entrega ao repertório de autores portugueses e à sua divulgação sistemática, nomeadamente através de gravações exemplares tanto na substância musical como na qualidade fonográfica, dificilmente tem competidores, mesmo entre pianistas residentes em Portugal.



O investimento na pesquisa e a paixão com que se dedica à música que interpreta explicam um dos maiores motivos de interesse deste CD duplo, que é a recuperação do original para piano do Canto de Amor e de Morte, uma versão que o compositor deu por “inutilizada”. Trata-se duma peça-chave na obra de Lopes-Graça, composta em 1961 após uma grave crise existencial que quase colocou o compositor à beira do suicídio, e que representa um momento de viragem na sua linguagem musical – acentuando o pendor para um “expressionismo dramático de carácter mais ou menos atonal” (palavras do compositor) que nela se manifestava em estado latente. Essa viragem traduz-se no extremar do princípio da variação evolvente ou amplificadora (entwickelnde Variation ou evolving variation) a partir de figurações elementares melódico-harmónicas e rítmicas. A dissonância (nomeadamente, intervalos de segunda e de sétima obsessivos) está sempre presente e não tem resolução: é a dissonância entre o autor e uma realidade social e política que lhe é odiosa, que lhe é hostil, que o limita drasticamente nas suas expectativas de realização pessoal e artística, que o oprime como ser humano, que o dilacera na sua esfera mais íntima. É a obra confessional de um homem que se “deita ao lado da sua solidão”[1] – um homem, que, proibido pela Ditadura do Estado Novo do exercício da docência (quer nas escolas públicas, quer privadas), perseguido política e economicamente pela sua militância comunista, mas afrontando sempre com intransigência e coragem as adversidades da vida, chegara aos 54 anos confinado a um quarto alugado, pois não tinha meios para arrendar um apartamento próprio. É essa dissonância existencial que emana do gesto global da obra – um gesto expressionista, que vem das profundezas da subjetividade.


[1] Hoje deitei-me ao lado da minha solidão – verso de um dos poemas de Eugénio de Andrade incluído no ciclo de canções para canto e piano As mãos e os frutos, composto por Lopes-Graça em 1959.

(...)

Em Cosmorame (1963) Lopes-Graça dialoga com os povos de todo o mundo numa suite de 21 peças. O título original em francês, acrescido do subtítulo Grand recueil de pièces pour piano: composés sur des airs de divers pays et consacrés à la fraternité des peuples: première partie, previa uma segunda parte, que não chegou a ser composta. Num mundo de conflitos agudizados que espalhavam em vários continentes a devastação e a morte, Lopes-Graça proclama a fraternidade dos povos através da sua música: ...se eu queria celebrar a fraternidade dos povos na paz, na amizade e na compreensão mútuas – ideal que tenho muito a peito –, porque não haveria de me dirigir aos seus cantos e às suas danças, para com eles compor um ramalhete de pecinhas que os irmanasse no meu pensamento e na minha arte, e isto mediante aquilo que mais os individualiza e, ao mesmo tempo, os aproxima em espírito, e já que de outros poderes não disponho para promover a sua aliança? ... não constituirá ao menos um acto de alguma coragem o procurar fazer assumir à arte, à música, na espécie, um gesto de amor, hoje que ela, a música, parece, não direi perdida, mas solipisticamente encerrada no mágico anel das suas experiências e das suas descobertas, e hoje em que, num mundo de trágico desconcerto, os gestos de amor se tornam tão urgentes? Um gesto de amor, este Cosmorama. Conterá ele a arte que possa exalçar esse gesto?[4]
O propósito do compositor é ainda acentuado pela citação do Telémaco de Fénélon, inscrito na partitura: Tout le genre humain n’est qu’une famille dispersée sur la face de toute la terre. Tous les peuples sont frères, et doivent s’aimer comme tels. Malheur à ces impies qui cherchent une gloire cruelle dans le sang de leurs frères, qui est leur propre sang.
Lopes-Graça terminou a obra e escreveu as linhas da sua apresentação acima referidas em plena guerra colonial (deflagrada em 1961), quando soldados portugueses e militantes dos movimentos de libertação de Angola, Guiné Bissau, Cabo Verde e Moçambique se defrontavam em sangrentos combates. Daí ganhar particular relevância política o facto de, no contexto da obra, Portugal e Moçambique serem colocados em pé de igualdade, como povos fraternos.[5] José Eduardo Martins trabalhou detidamente na análise de Cosmorame, aplicou-se no esforço de decomposição estrutural e decifração dramatúrgica, como se não se conformasse com a designação de pecinhas dada pelo compositor. Na sua interpretação, e assim realizada integralmente, a obra surge-nos como um monumento, um memorial à fraternidade dos povos, sobre o pano de fundo de um mundo onde a guerra e as lutas fratricidas continuam a grassar.


Mário Vieira de Carvalho

Cascais, 25 de Março de 2012


[1] Hoje deitei-me ao lado da minha solidão – verso de um dos poemas de Eugénio de Andrade incluído no ciclo de canções para canto e piano As mãos e os frutos, composto por Lopes-Graça em 1959.
[2] Herculana de Carvalho era mãe de Guilherme da Costa Carvalho, dirigente do Partido Comunista Português, que, à data da composição da obra se encontrava prisioneiro no Campo de Concentração do Tarrafal (em Cabo Verde, então sob domínio colonial português) e que chegou a ouvi-la, numa gravação, durante o seu cativeiro.
[3] A evocação da mesma “canção heroica”, Jornada, aparece igualmente na Elegia à memória de D. Herculana de Carvalho, mas mais enfatizada.
[4] Lopes-Graça, texto para a primeira edição fonográfica de Cosmorame, 1967 (Piano: Georges Bernand), citado in: Romeu Pinto da Silva, Tábua Póstuma da Obra Musical de Fernando Lopes-Graça, Lisboa, Caminho, 2009, p. 196.
[5] Eis uma posição diametralmente oposta à do compositor português Joly Braga Santos, que, ao integrar elementos musicais dos marimbeiros de Zavala, colhidos in loco (Moçambique), na sua Sinfonia n.º 5, Virtus Lusitaniae (1966) – uma obra encomendada pelo Estado Novo, também em plena guerra colonial –, acolheu o ponto de vista oficial do regime, hostil aos movimentos de libertação e à independência das colónias