CD Duplo PS 5017
Fernando Lopes-Graça – Obras para piano
Canto de Amor e de Morte
Músicas Fúnebres
Música de piano para as crianças
Cosmorama
Piano: José Eduardo Martins
Este duplo CD de
música para piano de Fernando Lopes-Graça é resultado duma intensa atividade de
investigação do intérprete José Eduardo Martins, cuja dedicação e entrega ao
repertório de autores portugueses e à sua divulgação sistemática, nomeadamente
através de gravações exemplares tanto na substância musical como na qualidade
fonográfica, dificilmente tem competidores, mesmo entre pianistas residentes em
Portugal.
O investimento na
pesquisa e a paixão com que se dedica à música que interpreta explicam um dos
maiores motivos de interesse deste CD duplo, que é a recuperação do original para
piano do Canto de Amor e de Morte,
uma versão que o compositor deu por “inutilizada”. Trata-se duma peça-chave na
obra de Lopes-Graça, composta em 1961 após uma grave crise existencial que
quase colocou o compositor à beira do suicídio, e que representa um momento de
viragem na sua linguagem musical – acentuando o pendor para um “expressionismo
dramático de carácter mais ou menos atonal” (palavras do compositor) que nela
se manifestava em estado latente. Essa viragem traduz-se no extremar do
princípio da variação evolvente ou amplificadora (entwickelnde Variation ou evolving
variation) a partir de figurações elementares melódico-harmónicas e
rítmicas. A dissonância (nomeadamente, intervalos de segunda e de sétima
obsessivos) está sempre presente e não tem resolução: é a dissonância entre o
autor e uma realidade social e política que lhe é odiosa, que lhe é hostil, que
o limita drasticamente nas suas expectativas de realização pessoal e artística,
que o oprime como ser humano, que o dilacera na sua esfera mais íntima. É a
obra confessional de um homem que se “deita ao lado da sua solidão”[1]
– um homem, que, proibido pela Ditadura do Estado Novo do exercício da docência
(quer nas escolas públicas, quer privadas), perseguido política e
economicamente pela sua militância comunista, mas afrontando sempre com
intransigência e coragem as adversidades da vida, chegara aos 54 anos confinado
a um quarto alugado, pois não tinha meios para arrendar um apartamento próprio.
É essa dissonância existencial que emana do gesto global da obra – um gesto
expressionista, que vem das profundezas da subjetividade.
[1] Hoje deitei-me ao lado da minha solidão
– verso de um dos poemas de Eugénio de Andrade incluído no ciclo de canções
para canto e piano As mãos e os frutos,
composto por Lopes-Graça em 1959.
(...)
Em Cosmorame (1963) Lopes-Graça dialoga
com os povos de todo o mundo numa suite
de 21 peças. O título original em francês, acrescido do subtítulo Grand recueil de pièces pour piano: composés
sur des airs de divers pays et consacrés à la fraternité des peuples: première
partie, previa uma segunda parte, que não chegou a ser composta. Num mundo
de conflitos agudizados que espalhavam em vários continentes a devastação e a
morte, Lopes-Graça proclama a fraternidade dos povos através da sua música: ...se eu queria celebrar a fraternidade dos
povos na paz, na amizade e na compreensão mútuas – ideal que tenho muito a
peito –, porque não haveria de me dirigir aos seus cantos e às suas danças,
para com eles compor um ramalhete de pecinhas que os irmanasse no meu
pensamento e na minha arte, e isto mediante aquilo que mais os individualiza e,
ao mesmo tempo, os aproxima em espírito, e já que de outros poderes não
disponho para promover a sua aliança? ... não constituirá ao menos um acto de
alguma coragem o procurar fazer assumir à arte, à música, na espécie, um gesto
de amor, hoje que ela, a música, parece, não direi perdida, mas
solipisticamente encerrada no mágico anel das suas experiências e das suas descobertas,
e hoje em que, num mundo de trágico desconcerto, os gestos de amor se tornam
tão urgentes? Um gesto de amor, este Cosmorama. Conterá ele a arte que possa exalçar esse gesto?[4]
O propósito do
compositor é ainda acentuado pela citação do Telémaco de Fénélon, inscrito na partitura: Tout le genre humain n’est qu’une famille dispersée sur la face de
toute la terre. Tous les peuples sont frères, et
doivent s’aimer comme tels. Malheur à ces impies qui cherchent une gloire
cruelle dans le sang de leurs frères, qui est leur propre sang.
Lopes-Graça
terminou a obra e escreveu as linhas da sua apresentação acima referidas em
plena guerra colonial (deflagrada em 1961), quando soldados portugueses e
militantes dos movimentos de libertação de Angola, Guiné Bissau, Cabo Verde e
Moçambique se defrontavam em sangrentos combates. Daí ganhar particular
relevância política o facto de, no contexto da obra, Portugal e Moçambique
serem colocados em pé de igualdade, como povos fraternos.[5]
José Eduardo Martins trabalhou detidamente na análise de Cosmorame, aplicou-se no esforço de decomposição estrutural e
decifração dramatúrgica, como se não se conformasse com a designação de pecinhas dada pelo compositor. Na sua
interpretação, e assim realizada integralmente, a obra surge-nos como um
monumento, um memorial à fraternidade dos povos, sobre o pano de fundo de um
mundo onde a guerra e as lutas fratricidas continuam a grassar.
Mário Vieira de
Carvalho
Cascais, 25 de
Março de 2012
[1] Hoje deitei-me ao lado da minha solidão
– verso de um dos poemas de Eugénio de Andrade incluído no ciclo de canções
para canto e piano As mãos e os frutos,
composto por Lopes-Graça em 1959.
[2] Herculana de Carvalho era mãe de Guilherme da Costa Carvalho, dirigente
do Partido Comunista Português, que, à data da composição da obra se encontrava
prisioneiro no Campo de Concentração do Tarrafal (em Cabo Verde, então sob
domínio colonial português) e que chegou a ouvi-la, numa gravação, durante o
seu cativeiro.
[3] A evocação da mesma “canção heroica”, Jornada, aparece igualmente na Elegia à memória de D. Herculana de Carvalho, mas mais enfatizada.
[4] Lopes-Graça, texto para a primeira edição
fonográfica de Cosmorame, 1967
(Piano: Georges Bernand), citado in: Romeu Pinto da Silva, Tábua Póstuma da Obra Musical de Fernando Lopes-Graça, Lisboa,
Caminho, 2009, p. 196.
[5] Eis uma
posição diametralmente oposta à do compositor português Joly Braga Santos, que,
ao integrar elementos musicais dos marimbeiros de Zavala, colhidos in loco (Moçambique), na sua Sinfonia n.º
5, Virtus Lusitaniae (1966) – uma
obra encomendada pelo Estado Novo, também em plena guerra colonial –, acolheu o
ponto de vista oficial do regime, hostil aos movimentos de libertação e à
independência das colónias
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